domingo, dezembro 12, 2004

Sinergias I ("the first thing we do is kill all the lawyers")

Ligações... pontos de contacto... há os inusitados, os esperados, aqueles que ninguém identifica imediatamente mas que todos suspeitam existir, e ainda aqueles que todos reconhecemos enquanto tais, quase intuitivamente. Proponho-me lançar luz sobre alguns.

Albert Camus tem nos seus "Carnets" um curioso apontamento: "The atraction that certain minds feel for the law and the abusurdity of its workings. Gide, Dostoyevsky, Balzac, Malraux, Melville, etc. Try to find why."

Com Camus, também me interrogo sobre as sinergias entre a Literatura e o Direito.

É indesmentível a atracção que os profissionais do direito exercem sobre a literatura.

O acolhimento que merecem os causídicos e os profissionais do foro em geral nem sempre é o melhor, como aliás nos esclarece Henri Robert,

"A maior parte das vezes o advogado não tem bom acolhimento na literatura. Representam-no ordinariamente sob a figura de um insuportável grulha, espertalhão. amando a chicana, as velharices, os autos, hábil para sustentar todas as causas, alegando a inocência mesmo quando está convencido da culpabilidade."
Shakespeare também não morria de amores pelos juristas e em especial pelos advogados, em Henrique VI, 2ª parte, acto IV, cena II, Ricardo, o cortador de Ashford, dirigindo-se ao rebelde João Cade diz: "The first thing we do is kill all the lawyers."

Será a relação entre Direito e Literatura concebível e até desejável ou incomportável face às exigências de um legalismo estrito?

A compreensão de uma norma jurídica, do conteúdo de um acórdão ou de qualquer texto doutrinário pressupõe necessariamente o hábil manejo da principal ferramenta de um jurista: a linguagem, as palavras.

Justiça e Literatura partilham o terreno da vida, dos conflitos sociais, da relação dos homens com o justo e com a norma, as regras de interpretação dos textos e a retórica.

A Justiça oferece, não raro, à Literatura a matéria àspera para o seu trabalho de produção estética e artistíca.

A Literatura oferece à Justiça a reflexão sobre o comportamento humano e social, e também, sobre a lei, o fenómeno judiciário e as suas práticas.
A Literatura e o Direito não surgem, portanto, nos termos de uma relação inconciliável, antes frequente e até desejável, pelas possibilidades que representa.

Estas são algumas das questões de que se ocupa o "law and literature movement" , com particular enfoque nos EUA, e que congrega numerosos apoiantes e seguidores, na magistratura inclusive, mas também ferozes criticos que questionam a relação entre o Direito e aLiteratura e a utilidade do seu estudo académico.

Mas não só como disciplina académica, do ponto de vista comercial também é interessante observar como se cruzam os dois mundos, o sucesso comercial de Johh Grisham com os sete milhões de exemplares vendidos pela "Firma" e os milhões de dólares em "authorship rights" pela adaptação cinematográfica dos seus filmes são disso exemplo.

Os livros de Grisham são simples e acessíveis, thrillers bem escritos sobre o aparelho judicial norte americano e advogados ocupados com causas complexas envolvendo dilemas morais agudos.

Despertam o imaginário de milhões para a advocacia.

Eça de Queirós, Camilo Pessanha, Vinicius de Morais, Moliére, Kafka, Goethe, Walter Scott, Vasco da Graça Moura...todos ilustres juristas e escritores, ensaístas, dramaturgos.

Não se me oferecem dúvidas sobre as sinergias entre o Direito e a Literatura, como refere Joana Aguiar e Silva: "mergulhar em hábitos de leitura, ou, ainda melhor, em mais cuidadas análises literárias, pode contribuir para dotar o jurista destas alternativas formas de racionalidade, apurando a sua capacidade imaginativa e a sua inteligência empática."